quarta-feira, agosto 20, 2003

A resposta

Caro Espectador (Comprometido)

Se bem entendi, não é tanto a questão da descolonização que lhe interessa, mas sim a postura da esquerda face ao fenómeno. Postura essa equivalente à que a mesma esquerda mantém face a outros acontecimentos de igual envergadura. Não adjectivei propositadamente. Deve entender que sendo eu “de esquerda” utilizaria outros adjectivos que não os seus.
Vou atrever-me a dar-lhe uma opinião, que é só isso, uma opinião sem qualquer pretensão a ser algo mais.
Parte do que distingue a direita da esquerda, é o sonho. O sonho, ou os sonhos são um “território” muito vasto, mas no “campo” político, a esquerda arroga-se detentora da parte sonhadora da sociedade. A esquerda, quase por definição, acredita no homem e na sua capacidade de construir um mundo melhor. No Homem, e não neste ou naquele homem. A direita, duvida. Tem uma visão pragmática e desconfiada da natureza humana e por isso duvida. (Digamos que, genericamente, duvida serem os homens capazes dessa construção e que ela deverá ser levada a cabo por alguns desses homens. Os melhor preparados, certamente. A forma de os encontrar varia muito.) A esquerda acredita na progressão (utilizei esta palavra há falta de melhor, neste momento) da humanidade para sociedades mais justas, ainda que tal tenha que ser feito por rupturas. A direita acredita no aperfeiçoamento por ajustes. São duas faces de uma mesma moeda, que terá sempre essas duas faces, embora a espessura possa variar, definindo territórios comuns conforme a moeda (leia-se, os tempos). Da mesma forma que uma moeda não é um ovo ou uma esfera, a questão das fronteiras ideológicas, para mim, não se põe. Elas existiram sempre, porque na essência, são duas formas distintas de estar na vida. As temáticas, as doutrinas, frequentes vezes mudam de lado, mas isso não desvirtua o essencial. A esquerda “começou” com os liberais, no entanto o liberalismo está hoje no lado direito do espectro político.
Continuando, a esquerda abriu ao mundo muitas novas possibilidades, através de outras tantas experiências. Grande parte delas correram mal, independentemente dos ensinamentos que proporcionaram e dos novos patamares de evolução social e humana que estabeleceram. É muito natural que ao ser confrontada com esses factos, a esquerda se resguarde e tenha relutância em assumi-los, ou mesmo que tenda a culpar o outro lado, pela falta de empenho nessas novas soluções (a tal desconfiança pragmática) ou pelo boicote estratégico promovido (Kissinger, por exemplo). Não nos podemos esquecer, que se trata de homens e mulheres, que não poucas vezes, empenharam toda a sua vida nessas lutas. Evidentemente que não é fácil assumir e deglutir posições que causaram milhares de mortes e sofrimento generalizado. Não se passa exactamente o mesmo com a direita? Com essa direita que Ana Gomes fala, que se cala sobre Pinochet e que no fundo até aceita a invasão indonésia a Timor.
Mas, da mesma forma que existem várias direitas, e eu conheço algumas, existem várias esquerdas.
A esquerda que me interessa não é aquela que não perdoa aos americanos a queda do bloco soviético e que mantém uma esperança em cuba. No que diz respeito ao bloco soviético, nunca tive dúvidas sobre o seu fracasso e nunca entendi como foi possível acreditar “naquilo”. De qualquer das formas tive a felicidade de visitar o leste duas vezes antes da queda do muro e duas depois, e ainda me impressiona que se tenham desbaratado quase todas as coisas boas dos regimes comunistas (asseguro-lhe que havia algumas) por um americanismo primário. Note-se que os Estados Unidos são o ÚNICO país pelo qual eu trocaria este nosso Portugal, e que Nova Iorque é, de longe, a melhor cidade que conheço.
A esquerda que me interessa é aquela que continua a sonhar com um mundo melhor e que não se atemoriza com rupturas quando elas são necessárias. Não, não se trata da fantochada do fórum social português, onde toda aquela gente sabe muito bem o que quer, que é, no limite, impor novas ordens onde se está mesmo a ver quem fica a mandar. Provavelmente vai apenas conseguir algum espaço para novos protagonistas, o que no fundo serve bem os mesmos interesses. É a esquerda que sabe que cada ser humano é um só e que o seu valor perante os outros seres humanos é esse mesmo, o da unidade. (Isto já não é verdade para as nações e muito menos para as civilizações). É a esquerda que tem como prioridade o homem e não esta ou aquela tese económica. Enfim, é a esquerda de muitos valores e princípios que não importam ao caso.
Importa é que existe uma esquerda que não se demite. Que não se ausenta. Uma esquerda que está sempre pronta a debater e confrontar opiniões, assim elas sejam genuínas. (continua quando houver tempo).
Um abraço.